Preciso de minha cabeça para rejeitar ou
assentir, minha mão para saudar ou fechar em punho, meus pulmões para gritar ou
sussurrar. Não irei gentilmente para uma prateleira, eviscerado, para me tornar
um não livro.
(Ray Bradbury, Fahrenheit 451)
Reunião de professores.
A escola tinha ganhado uma biblioteca. Era só uma estante. Mas
com a promessa de se tornar uma Alexandria. A diretora precisava preencher
o vazio das prateleiras e das cabeças dos meninos. Não queria decidir sozinha
os títulos a encomendar da livraria. Aprendeu, no curso de gestão escolar, que
um bom gestor sempre consulta seus subordinados (que o curso chamava de “pares”).
Ela era uma democrata. Ai de quem discordasse!
– Então, meus colegas. Precisamos fazer uma lista de livros
que enobreçam o caráter dos nossos alunos e incentivem a leitura na juventude. Preciso
de sugestões.
A professora de Literatura foi a primeira a erguer a mão.
– Obviamente, vamos começar com os clássicos brasileiros. Machado
de Assis é unanimidade.
– Aquele do livro de adultério? – replicou, perplexa, uma
unanimidade.
– Você deve estar falando do Dom Casmurro.
– Esse mesmo!
– Machista! Chama a mulher de dissimulada! – protestou uma
feminista.
– Feminazi! Incentiva a mulher ao adultério! – protestou um
machista.
– Tá. Esquece o Machado. Melhor os românticos. Sentimento. Inocência.
Pureza. Iracema? – tentou, ainda uma
vez, a professora.
– Incentivo à sedução e ao estupro! – gritou um segundo.
– Exaltação do colonizador! – bradou um terceiro.
E vieram ainda os quartos e quintos:
– E essa coisa de muito índio, muita gente pelada na mão de
menino... Não dá. Incentiva a pedofilia. Temos que proteger nossas crianças.
– Além disso, Alencar é racista! Trata o índio como um
subalterno.
– Castro Alves também. Exemplo do paternalismo branco, falando
em nome do negro.
– E, depois, todo o mundo sabe que cinema e livro de
brasileiro só mostra pornografia – argumentou o colega que se orgulhava de
nunca ter visto um filme ou lido um livro dessa gente tupiniquim. – Esqueçam os
brasileiros. Vamos pegar livro estrangeiro. Os gregos! Essa coisa velha da
Europa deve ser boa. Senão, não durava tanto.
– Tosse, tosse – um velhote engasgou-se com o pão de queijo
murcho. – Como é que é? Uma Medeia que mata os filhos pra se vingar do marido
adúltero? Um Édipo que mata o pai pra comer a mãe? Onde já se viu pôr uma
porcaria dessas nas cândidas mãos dos nossos jovens? Devia ser tudo proibido,
isso, sim.
– Pensei em coisa mais educativa. Tipo aquela história de
Troia, com o Brad Pitt.
– Um homem se traveste de mulher e depois vai pra guerra,
vingar a morte do amante. É isso que vocês querem para nossas crianças? Propaganda
de ideologia de gênero? Olha só o que Homero fez com aqueles gregos. Dizem que
era tudo bi. Uma pouca vergonha!
– Então, vamos pegar livro de religião – sugeriu uma mocinha
de fala mansa. – Aquele do italiano. Qual é mesmo?
– A divina comédia?
– Ela falou “livro de religião”. Não acho legal dar livro de
comédia pra juventude. Rir é imoral. Por isso, ninguém leva mais nada a sério.
– Mas é de religião...
– É de religião, sim! E do tipo pervertido! – protestou o
colega espírita. – De jeito nenhum! Isso é pura propaganda da igreja católica. Temos
que garantir a diversidade religiosa.
– E o Shakespeare? Gosto dos memes dele no Facebook.
– São bons, mesmo. E Romeu
e Julieta encanta todo o mundo.
– É, encanta, sim! – indignou-se aquela professora, que, em
vez dos livros, preferia ver os Cinquenta
tons de cinza, mais escuros e liberdade no cinema. – Por isso, tem tanta
menina grávida. É de ficar lendo esse lixo que promove o sexo entre
adolescentes.
– Também acho. Melhor pegar livro de heróis e gente de
valor. Eu proponho Os Lusíadas.
– Só se tirar a Inês e a Ilha dos Amores. Camões erotiza a
juventude.
– Foco, colegas! Foco! – implorou a diretora, incomodada com
aquela bagunça que, no curso de liderança, chamaram de “gestão participativa”. Começava
a se arrepender de ser uma líder tão democrática. – Precisamos incentivar a
leitura. Ponto. Mas já vi que concordamos que seja feito sem colocar muita
ideia na cabeça das crianças. Menino, quando pensa, é mesmo o diabo.
– Então, tenho um bom! Que tal O pequeno príncipe? Se a Miss Universo leu...
– Está louca?! – exasperou-se o professor liberal. –
Apologia à monarquia, no século XXI?!
– Já sei! – Iluminou-se uma casta professorinha, que rezava
o pai-nosso com as crianças, todo dia, antes, depois e no intervalo da aula. –
Vamos comprar bíblias! Não tem como falhar. Prateleiras repletas só do bom e
milenar verbo cristão.
– Sei não. Essa coisa de amar todo o mundo... Pode terminar
em orgia no recreio.
– Muito bem, colegas – retomou a diretora. – Já vi que todos
parecemos concordar numa coisa: precisamos de uma arte inofensiva. Algo para intervir
na educação dos nossos jovens, sem criar crises ou dissidências – postulou a democrática
gestora. – Uma obra que faça a gente pensar como um só. Sem questionamentos. Sem
discordâncias. Uma só voz. Um só pensamento. A verdade sem nenhuma dúvida. Sem
a agressividade da crítica ou o poder subversivo e corrosivo dessa arte
corruptora dos cidadãos de bem.
Chegaram, afinal, a um consenso. Encerraram a reunião. As mãos
se apertaram pela decisão de elevado senso moral. Lavraram a ata. E correram
para casa, que era o último capítulo da novela.
A diretora respirou, aliviada. Encomendou os despachos. E dormiu
tranquila. Já sabia o que fazer com a estante vazia da biblioteca.
No dia seguinte, comprou uma televisão.
Meu Deus...rsrsrs
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