quarta-feira, 7 de março de 2018

O CÂNONE


Preciso de minha cabeça para rejeitar ou assentir, minha mão para saudar ou fechar em punho, meus pulmões para gritar ou sussurrar. Não irei gentilmente para uma prateleira, eviscerado, para me tornar um não livro. (Ray Bradbury, Fahrenheit 451)

Reunião de professores.
A escola tinha ganhado uma biblioteca. Era só uma estante. Mas com a promessa de se tornar uma Alexandria. A diretora precisava preencher o vazio das prateleiras e das cabeças dos meninos. Não queria decidir sozinha os títulos a encomendar da livraria. Aprendeu, no curso de gestão escolar, que um bom gestor sempre consulta seus subordinados (que o curso chamava de “pares”). Ela era uma democrata. Ai de quem discordasse!
– Então, meus colegas. Precisamos fazer uma lista de livros que enobreçam o caráter dos nossos alunos e incentivem a leitura na juventude. Preciso de sugestões.
A professora de Literatura foi a primeira a erguer a mão.
– Obviamente, vamos começar com os clássicos brasileiros. Machado de Assis é unanimidade.
– Aquele do livro de adultério? – replicou, perplexa, uma unanimidade.
– Você deve estar falando do Dom Casmurro.
– Esse mesmo!
– Machista! Chama a mulher de dissimulada! – protestou uma feminista.
– Feminazi! Incentiva a mulher ao adultério! – protestou um machista.
– Tá. Esquece o Machado. Melhor os românticos. Sentimento. Inocência. Pureza. Iracema? – tentou, ainda uma vez, a professora.
– Incentivo à sedução e ao estupro! – gritou um segundo.
– Exaltação do colonizador! – bradou um terceiro.
E vieram ainda os quartos e quintos:
– E essa coisa de muito índio, muita gente pelada na mão de menino... Não dá. Incentiva a pedofilia. Temos que proteger nossas crianças.
– Além disso, Alencar é racista! Trata o índio como um subalterno.
– Castro Alves também. Exemplo do paternalismo branco, falando em nome do negro.
– E, depois, todo o mundo sabe que cinema e livro de brasileiro só mostra pornografia – argumentou o colega que se orgulhava de nunca ter visto um filme ou lido um livro dessa gente tupiniquim. – Esqueçam os brasileiros. Vamos pegar livro estrangeiro. Os gregos! Essa coisa velha da Europa deve ser boa. Senão, não durava tanto.
– Tosse, tosse – um velhote engasgou-se com o pão de queijo murcho. – Como é que é? Uma Medeia que mata os filhos pra se vingar do marido adúltero? Um Édipo que mata o pai pra comer a mãe? Onde já se viu pôr uma porcaria dessas nas cândidas mãos dos nossos jovens? Devia ser tudo proibido, isso, sim.
– Pensei em coisa mais educativa. Tipo aquela história de Troia, com o Brad Pitt.
– Um homem se traveste de mulher e depois vai pra guerra, vingar a morte do amante. É isso que vocês querem para nossas crianças? Propaganda de ideologia de gênero? Olha só o que Homero fez com aqueles gregos. Dizem que era tudo bi. Uma pouca vergonha!
– Então, vamos pegar livro de religião – sugeriu uma mocinha de fala mansa. – Aquele do italiano. Qual é mesmo?
A divina comédia?
– Ela falou “livro de religião”. Não acho legal dar livro de comédia pra juventude. Rir é imoral. Por isso, ninguém leva mais nada a sério.
– Mas é de religião...
– É de religião, sim! E do tipo pervertido! – protestou o colega espírita.  De jeito nenhum! Isso é pura propaganda da igreja católica. Temos que garantir a diversidade religiosa.
– E o Shakespeare? Gosto dos memes dele no Facebook.
– São bons, mesmo. E Romeu e Julieta encanta todo o mundo.
– É, encanta, sim! – indignou-se aquela professora, que, em vez dos livros, preferia ver os Cinquenta tons de cinza, mais escuros e liberdade no cinema. – Por isso, tem tanta menina grávida. É de ficar lendo esse lixo que promove o sexo entre adolescentes.
– Também acho. Melhor pegar livro de heróis e gente de valor. Eu proponho Os Lusíadas.
– Só se tirar a Inês e a Ilha dos Amores. Camões erotiza a juventude.
– Foco, colegas! Foco! – implorou a diretora, incomodada com aquela bagunça que, no curso de liderança, chamaram de “gestão participativa”. Começava a se arrepender de ser uma líder tão democrática. – Precisamos incentivar a leitura. Ponto. Mas já vi que concordamos que seja feito sem colocar muita ideia na cabeça das crianças. Menino, quando pensa, é mesmo o diabo.
– Então, tenho um bom! Que tal O pequeno príncipe? Se a Miss Universo leu...
– Está louca?! – exasperou-se o professor liberal. – Apologia à monarquia, no século XXI?!
– Já sei! – Iluminou-se uma casta professorinha, que rezava o pai-nosso com as crianças, todo dia, antes, depois e no intervalo da aula. – Vamos comprar bíblias! Não tem como falhar. Prateleiras repletas só do bom e milenar verbo cristão.
– Sei não. Essa coisa de amar todo o mundo... Pode terminar em orgia no recreio.
– Muito bem, colegas – retomou a diretora. – Já vi que todos parecemos concordar numa coisa: precisamos de uma arte inofensiva. Algo para intervir na educação dos nossos jovens, sem criar crises ou dissidências – postulou a democrática gestora. – Uma obra que faça a gente pensar como um só. Sem questionamentos. Sem discordâncias. Uma só voz. Um só pensamento. A verdade sem nenhuma dúvida. Sem a agressividade da crítica ou o poder subversivo e corrosivo dessa arte corruptora dos cidadãos de bem.
Chegaram, afinal, a um consenso. Encerraram a reunião. As mãos se apertaram pela decisão de elevado senso moral. Lavraram a ata. E correram para casa, que era o último capítulo da novela.
A diretora respirou, aliviada. Encomendou os despachos. E dormiu tranquila. Já sabia o que fazer com a estante vazia da biblioteca.
No dia seguinte, comprou uma televisão.

Um comentário:

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