domingo, 29 de outubro de 2017

SÓ PARA OS VIVOS

Montaigne disse que filosofar é aprender a morrer.
Por isso, fiz Letras. Em certos assuntos, não tenho pressa de me diplomar. E acho que meu Lattes tem mais valor sem um certificado de óbito.
O que não impede que eu pense, uma vez por ano, na morte. Afinal, temos um dia por ano para pensar em muitas coisas: um dia por ano para pensar nas mulheres; um dia por ano para pensar nas crianças; um dia por ano para pensar nos negros; um dia por ano para pensar na república; e – por que não? – um dia por ano para pensar nos mortos. São datas de purificação pela negligência nos outros 364. Como aquele cristão, que se prepara o ano inteiro para a confissão do Natal. “Padre, me perdoe, porque pequei...” E desenrola a lista, cuidadosa e esmeradamente produzida ao longo do ano, para culminar num emocionado instante de arrependimento natalino: “Padre, eu traí minha mulher e minhas duas amantes; roubei do meu sócio, na divisão da propina; escravizei trabalhadores e chamei de trabalho livre porque aboli o uso da bola de ferro; votei contra o impeachment do Temer; comprei o DVD das Coleguinhas...” Trezentos e sessenta e quatro dias de sacanagem para um dia de perdão. Nem agronegócio dá lucro tão alto.
Ora, com os mortos, não agimos diferentemente. Afinal, se traímos os vivos, por que não os defuntos, que reclamam menos?
É assim que os brasileiros, arduamente, pelejamos, dia a dia, pelo ano afora e adentro, para garantir o punhado de mortos a homenagear com coroas e obituários no dois de novembro. Como esta coluna pretende chegar até àqueles que sofreram dificuldades no processo de alfabetização, vou utilizar o vocabulário neoliberal. E dizer que o Brasil desponta entre os maiores investidores do segmento: fabrica, ao ano, mais de 400 mil mortos por falha ou falta de atendimento na saúde, e 60 mil mortos por homicídio, mais da metade com colaboração do tráfico, que também coopera na produção de cerca de 10 mil mortos por consumo de drogas. Sem falar nos 7 milhões de pessoas ainda ameaçadas pela fome, no país. Tudo isso, para ter o que fazer no feriado santo de novembro: lavar túmulo, encher vasos, entoar ladainhas, cumprir votos, dar notícias frescas ao defunto embolorado. Para o neoliberal: manter a saúde financeira da indústria de flores e velas. E mostrar como tratamos bem os nossos mortos.
Os vivos é que morrem de inveja.
Vai ver, é por isso que a maioria comemora o Finados: vingança. Emporcalhamos as lápides com umas flores murchas e fuligem de velas, para que pese sobre a cova do outro o que ele nos faz pesar na alma.
Deprimi.
Ainda bem que hoje tem capítulo novo de The walking dead. Pelo menos, esses mortos ainda sabem protestar.

domingo, 22 de outubro de 2017

BARBARINA, A NOSTÁLGICA

Quando a mãe de Barbarina, a Nostálgica, pariu a única filha, deu ao mundo mais uma coletora de sementes. Quando o que faltava, ao clã de neandertais, era outro homem masculino para repor o contingente guerreiro perdido para um dente-de-sabre. O patriarca da horda lamentou outra mulher inútil a atulhar a caverna já superlotada de trogloditas. Decretou:
– Uga uga!
E cumpriu-se a lei: Barbarina, a Nostálgica, se casaria com um soldado raso da tribo do norte, que tinha mais carne de mamute para alimentar boca inútil. Chegadas as núpcias, o noivo sequestrou Barbarina, a Nostálgica, e a arrastou pelos cabelos para se tornar mãe de muitos filhos. Porque carne de mamute, como todos sabiam, engravida.
Mais tarde, Barbarina, a Nostálgica, foi vendida a um pastor hebreu, por duas dúzias de cabritos. E lhe deu muitos filhos. Porque leite de cabra, como todos sabiam, engravida.
Um tal de Jacó prometeu terra de leite e mel no Egito. Barbarina perguntou se era leite de cabra.
– Vaca, garantiu aquele Jacó.
E Barbarina, a Nostálgica, foi plantar papiro nas lamas do Nilo. A lei do faraó deixava Barbarina cuidar dos negócios, junto do marido. Mas Barbarina teve muitos filhos do camponês egípcio. E precisava cuidar da cria. Porque a lama do Egito, como todos sabiam, engravida.
Do outro lado do Mediterrâneo, uns gregos inventaram uma tal de democracia, que, séculos mais tarde, do outro lado do Atlântico, ninguém sabia mais o que era. Mas, ali, Barbarina, a Nostálgica, ouviu dizer que as pessoas eram livres. O marido era. E obrigou Barbarina a fiar um tapete, enquanto ele jogava pelada com um time troiano nas praias de Ílion. Quando o arruaceiro voltou, Barbarina, a Nostálgica, fez greve de sexo. Apanhou do marido e teve outro filho. Porque, na Grécia, como todos sabiam, sexo engravida.
Veio a Idade Média e Barbarina, a Nostálgica, foi decapitada por não dar filhos ao seu esposo e rei. Em seguida, foi queimada por tomar chá de boldo, depois de uma ressaca. Quando todos sabiam que indigestão se cura com treze padre-nossos e vinte-e-duas ave-marias. E chá de boldo, como todos também sabiam, não engravida. Só novena a Santo Antônio.
Século das Luzes. Barbarina, a Nostálgica, protegida pelas leis do liberalismo inglês, também quis iluminar-se. Sair da menoridade kantiana.
Pediu mesada ao pai.
– Só casando, retrucou o respeitável e puritano genitor.
Barbarina sabia, como todos sabiam, que casamento engravida. Então, esperou o irmão macho herdar a fortuna da família. Pediu parte na herança.
– Só casando, retrucou o respeitável e puritano filho de seu pai.
Barbarina, a Nostálgica, tentou emprego. Mas não tinham lhe ensinado profissão. Foi limpar a casa de um respeitável e puritano herdeiro. Pediu salário.
– Só depois dos vinte e um anos. É a lei.
Barbarina, que era nostálgica, mas ainda não era burra, resignou-se e casou com seu dono. E teve muitos filhos. Mas os filhos não eram seus, eram do patrão. Era a lei. Tentou pedir o divórcio, para não fazer mais filho de outros. Mas Barbarina, como qualquer mulher, não podia pedir divórcio. Era só o que faltava!
Hoje, Barbarina, a Nostálgica, é executiva numa multinacional e carrega camisinhas na carteira. Nunca se sabe. Tem planos para outra faculdade, talvez uma carreira diplomática, ou a presidência da República.
Seria feliz, se não fossem esses tempos tão anárquicos. Tudo muito liberal. O mundo parece perdeu os limites.
– Bom era o meu tempo, reclama Barbarina, a Nostálgica.
Felizmente, desde o século dezenove, quando foi presa por defender o sufrágio universal, Barbarina pode votar. E já decidiu seu voto para o candidato que denuncia a corrupção dos valores da civilização e diz que não estupra mulher que não é gostosa.
No último aniversário, uma enrugada Barbarina sopra alguns séculos de velas no bolo e suspira, nostálgica:
– Uga, uga...

domingo, 15 de outubro de 2017

LOBBY ECUMÊNICO

Era no tempo do rei.
Súditos divertiam-se, a discutir governabilidade: César precisava de um novo aliado religioso, para manter o império. O olímpico Júpiter tinha outro ataque da próstata e pleiteava uma aposentadoria por invalidez. Se o imperador não agisse rápido, ia perder o próximo pleito eleitoral.
Não se faz política sem recursos do Além, aconselhava o sábio Virgílio, lembrando, em doze cantos decassílabos, que, para fundar Roma, até o ilustre Eneias tinha descido ao inferno.
Se é esse o preço, suspira o imperador, vamos lá, consultar os demônios.
E convoca o congresso.

Roma.
Um palácio de colunas sinuosas, rodeado por um lago e vinte e cinco Estados.
Senadores e deputados agrupam-se em bancadas. Cada qual com um lobista divinal, para defender sua igreja: Osíris, Brahma, Jeová, Richard Dawkins. Vêm, todos, com oferendas ao Grande César, que deve escolher uma religião para abençoar o seu Estado laico. (Fosse do seu gosto, adotaria Alá, para honrar ancestrais do Oriente. Mas o Corão ainda não foi escrito. Vamos a outros candidatos.)
O tratado é redigido pelos melhores contratualistas do reino: o primo e o cunhado de César. Um querubim proclama o documento: ao contratante, Lulio César, o deus contratado concede prestígio, fiéis para as urnas e cargo vitalício pós-vitalício; em contrapartida, o contratado e sua igreja (a preencher na linha pontilhada) gozam anistia na tributação.
Licitação aberta. Começam as ofertas e negociações.
E começam mal, pensa César, erguendo, entre o polegar e o mindinho, o sutra oferecido por Buda.
– Ó Grande César, eu lhe ofereço a salvação pela renúncia.
“Golpista!”
Exu estranha, mais tarde, o desaparecimento do Buda. O querubim cochicha:
– Acho que vi o venerável empurrado, para os fundos, por dois homens de óculos escuros.
O rival Vishnu não comparece.
– Alegou déficits no PIB cármico, informa o querubim, consultando um tablet. Mas enviou um avatar.
César lê o “Krishna” no crachá. Torce o nariz. Mandar subordinados para uma negociação dessas! Que desfeita!
Ao contrário, para juntar forças, Javé e Jesus reuniram-se numa holding familiar.
– Com a fusão, dobrou o número de eleit... digo, fiéis, explica o querubim.
Candidatos fortes! Não fosse o perigo de parecer favorável ao nepotismo, avisam o primo e o cunhado de César.
Tupã oferece um cocar e artesanato de pena e argila. César retribui o mimo com um espelhinho.
Odin rege um espetáculo pirotécnico de relâmpagos e trovões, que impressiona favoravelmente o exército e a indústria armamentista.
Iemanjá, em oposição, oferece amor e paz aos homens de boa vontade. O querubim cutuca César, e riem, divertidos:
– Ah, mulheres...
O nobre César já se vê em túnicas curtas para escolher um patrono celestial. Quando avisam da chegada de um atrasado.
Entra um homem de terno escuro. Chapéu escuro. Mala escura. O querubim adivinha a cor dos pensamentos.
O homem ensombrado põe a mala sobre a mesa. Abre. Nunca ninguém viu tantos dólares. Afinal, em Roma, fiéis sempre pagam dízimo em reais.
– Dou por encerrada a sessão, nobres colegas. Já temos um vencedor.
O Estado é laico, mas a propina é sagrada, cochicha, doutamente, o querubim. E encerra a sessão.
César e o vencedor deixam a assembleia. Precisam ajustar comícios e sermões.
Na saída do ensombrado, fica, de rasto, um cheiro de enxofre. As damas abanam leques. Arcanjos tapam o nariz. Todos encaram o querubim.
– Calma, aí, gente! Essa, eu juro que não fui eu!

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

ARTRITES E ARTISTES

História de número 1:
Quando chegou em casa, Nicolau mancava.
– Meu joelho, explicou à mulher.
A esposa, muito versada em medicina de Wikipedia, deu o diagnóstico:
– É bursite. O Lula teve.
Tirou uma foto e postou no WhatsApp das comadres, que, como todos sabem, foi a primeira associação médica da história e deu aula para o Hipócrates. Logo veio a contestação:
– É só artrite, contrariava, a prima de Taubaté.
Tiveram que recorrer a maiores especialistas: postagem no Facebook.
– Certeza de que não é bursite, proclamou um queijeiro de Minas, validado imediatamente pela opinião de um feirante de Caruaru.
Uma sojalite de Goiás indignou-se de tanta ignorância ortopédica e corrigiu, com citações do Twitter e ampla argumentação, comprovando ser um caso clássico de tendinite.
– Tendinite, não digo, pronunciou-se um ministro do supremo. – Mas certamente é uma tendinose.
No dia seguinte, lá vai Nicolau, mancando, tomar seu café na padaria. O garçom logo reconheceu o assunto viralizado:
– Bom dia, Seo Nicolau. Fiquei sabendo do seu problema. Se quiser, eu opero seu joelho. Aprendi num vídeo do You Tube.

História de número 2:
Quando chegou em casa, Nicolau trazia uma tela emoldurada.
– Fui eu que pintei, explicou à mulher.
A esposa, muito versada em filosofia estética de Wikipedia, deu o diagnóstico:
– É arte. O Romero Britto faz.
Tirou uma foto e postou no WhatsApp das comadres, que, como todos sabem, foi também a primeira associação de críticos de arte da história e deu aula para o Fídias. Logo veio a contestação:
– Isso não é arte, contrariava, a prima de Taubaté.
Tiveram que recorrer a maiores especialistas: postagem no Facebook.
– Certeza de que não é arte, proclamou um queijeiro de Minas, validado imediatamente pela opinião de um feirante de Caruaru.
Uma sojalite de Goiás indignou-se de tanta ignorância estética e corrigiu, com citações do Twitter e ampla argumentação, comprovando que aquilo era arte.
– Arte, não digo, pronunciou-se um ministro do supremo. – Mas certamente é coisa dessa gente artista.
No dia seguinte, lá vai Nicolau desautorizado, tomar seu café na padaria. O garçom logo reconheceu o assunto viralizado:
– Bom dia, Seo Nicolau. Fiquei sabendo do seu problema. Se quiser, eu pinto um quadro de verdade para o senhor. Aprendi num vídeo do You Tube.
*          *          *
Contei as duas histórias para um amigo, que não riu da última.
Achei justo. Afinal, arte ainda não é coisa tratada com a seriedade de um joelho.
Embora eu precise dos dois para andar.

RINGUE ELEITORAL

Um amigo confessou-me certo “cansaço eleitoreiro”. Disse que não aguenta mais escolher candidato como quem vai ao supermercado. – Parece...